
Há 20 dias escrevi este texto que por alguma razão mais forte que eu o WordPress impediu a publicação. Não duvido de mais nada que se relacione com destino. Por ter sido um momento importante para mim, achei justo publicar, ainda que tardiamente. Para quem quiser ver o vídeo desta escritora lendo o próprio texto, basta acessar o Facebook do Portas Abertas ou o Instagram. Tem direito a uns pares de lágrimas. Acho que os links estão aqui no site se o WordPress não mexeu também. 🎈
Hoje deixo de ser “inta” e passo a ser “enta”.
Ao invés de ter as paranóias típicas da idade – que também não deixo de ter, envolvendo sentido da vida, e das rugas na testa, bigode chinês e sustentação das bochechas, uma outra questão me acompanha e não é de agora.
Quando Pedro foi embora aos 39, deduzi por alguma lógica só minha que essa idade era um marco razoável para já ter realizado meus principais sonhos, e que ir me encontrar com ele antes dos 40 seria o adequado. Superar a linha dos 39 soava uma afronta – não sei bem a quem, nem a quê, talvez só a mim mas parecia errado, muito errado superar, avançar.
Desfaleci quase 365 vezes ao longo do último ano, não só pela pandemia mas por todas as propostas de trabalho que me consumiram madrugadas de análises e perderam prioridade de um dia para o outro. Por todos que filaram uma consulta como se eu fosse um padre no confessionário e não tivesse um punhado de contas para pagar. Pelas dezenas de calotes e por todas as vezes que precisei passar o pires pra exigir o que era meu. Chorei também pelos calotes afetivos. Chorei em cima de livros, do teclado do notebook, deitada no tapete, tomando banho, molhando a fronha do travesseiro, vendo fotos, ouvindo músicas, na frente do espelho, lendo, assistindo seriado, ao vivo e no privado. Chorei pela diáspora dos amigos devido à pandemia, chorei de saudades de quem era vivo e morreu mesmo sem ter morrido. Chorei até pelos objetos inanimados que foram minguando dia após dia sem perspectiva de reposição. Chorei porque tinha fome e me faltavam forças, chorei porque tomar um vinho foi ficando menos divertido e por quase todas as dezenas ou centenas de noites que passei em claro. Chorei porque quem não chora acha que o sono chega com um chá de camomila e não compreende o que está acontecendo. Chorei porque sabia que, ainda com o sol nascendo espetacularmente, na maioria das vezes minha única perspectiva era de tentar dormir das 6h às 9h, porque meus 3 vizinhos mais próximos resolveram destruir os apartamentos ao mesmo tempo e a cada dia eu ficava mais cansada e irritada. Chorei porque inclusive de madrugada, quando não tinha quebradeira, a famosa vizinha continuou me acordando com seus sapatos de salto como se estivesse treinando para um concurso de sapateado, sem alguém pra comprar minha briga. Chorei porque acordava pensando em dormir, e dormia pensando em não acordar. Chorei pelas puxadas de tapete que levei, pelo machismo que resvalou em mim, pelas heranças do patriarcado que me levaram cada vez mais a dizer nãos, pela desonestidade dos santos do pau oco, pelas caras de pau escondidas atrás das máscaras, pela irresponsabidade que levou gente correta a perder tanto, pela falta de empatia, por todo o fogo amigo que me chamuscou e sobretudo por medo. Chorei stalkeando, chorei pelo silêncio dos outros, chorei por quem não respeitou o meu, chorei pela minha falta do que dizer principalmente a quem espera que eu sempre tenha de dizer algo. Chorei pela ausência inexplicável de alguns que, pensando bem, não mereciam choro. Chorei porque muitas vezes nem tinha por quem chorar ou pra amar. E chorei por perceber que tanta gente próxima sequer percebeu o tanto que eu chorava. Chorei pelos telefonemas não atendidos, pelas mensagens não respondidas, pelos ombros feitos de pedra e sucintos em que não encontrei conforto. Chorei por ter tanta (?) idade, história pra contar e experiência (?) e ainda dar pérolas aos porcos sem mixaria.
Chorei desarrumando as malas que não viajaram mais para onde eu tinha planejado no meu quase glorioso 40o aniversário, chorei guardando os vestidos de paetê que há tempos aguardavam por uma noite de brilho, as sandálias douradas doidas pra desfilar (quem sabe até dançar) e os balões de aniversário, murchos, sem ar, como eu. Chorei cancelando voo, cruzeiro, hotel e o sonho do mais inusitado dos meus aniversários.
E chorei porque tão pouca gente enxerga além de um sorriso forçado e filtrado na linha do tempo das redes sociais. Gatos e bebês virtuais são infinitamente mais fáceis de entender e amar.
Chorei porque passei a chamar meu Reino dos Devaneios de calabouço – sem letra maiúscula nem nada. Chorei porque jamais imaginaria a vida que tenho hoje há 10 ou 20 anos. Chorei pelos filhos que não tive e pela família que me falta. Chorei porque tem gente com tantos problemas mais graves e quem chora sou eu. E chorei porque tenho direito de chorar, não tenho forças pra carregar as dores do mundo se o meu respira por aparelhos. E tem gente que me cobra performance – mas justo agora?
Chorei tanto que passaram 365 dias e chegaram os temidos 40. Silenciosos – “Dá licença, deixa a gente se aconchegar.” Não alcancei dezenas das minhas principais metas, e a essa altura meus objetivos são outros. Só preciso decifrar quais são e pegar a estrada certa.
Hoje me deixei levar por pequenas alegrias: os óculos retrô combinando com o biquíni de flamingos, as havaianas de glitter, o sol de rachar o coco, o chapéu com laçarote, o hotel em que há anos eu queria me hospedar e nunca dava certo, o vinho geladinho que desce fazendo coceguinhas até a barriga (assim que acabar a ressaca de ontem), alguns amigos que restaram na peneira da credibilidade e a mãe que atura todas as crises em tempo real e chora junto e também escondida, só pra não me fazer chorar mais.
A quem espera uma Ivy Instagramável todo dia, lamento informar: se não houvesse TBTs e filtros, minha timeline seria boa parte dos dias cinza, imóvel e muda. Que bom, sociedade do espetáculo! Sou gente.
40. Consegui, Pedro. Se você não estiver assistindo aí de cima, de camarote, essa confusão toda, te conto quando eu chegar aí. Já adianto que perdeu pouco dos 2 últimos anos, mas prometo continuar na luta pra sobreviver menos e viver mais.
Ps. O “despistada” fica por conta de um taxista mendonzino que, me vendo desorientada andando no sol escaldante sem rumo, me presenteou com esse adjetivo que não duvido ser o nome do meu próximo livro.
Por Ivy Cassa