
Me preparo pra dormir. Isso significa acender o abajur que faz barulho de chuva e tem uma luz calmante, acender o outro abajur que tem uma luz com o mesmo objetivo mas em outro tom e tirar as telas de qualquer natureza da frente.
Eu até ia tirar as telas da frente MESMO, mas então me lembrei que hoje foi dia de escarafunchar meus HDs externos, que têm recordações desde o meu primeiro computador. Textos adolescentes choramingosos e hiperbólicos, fotos em poses curiosas típicas da idade – talvez eu ainda não tenha superado totalmente essa fase, numa análise mais crítica -, péssimos enquadramentos, uma barriga que seria até desrespeito chamar de barriga de tão não barriga e namoradinhos, muitos namoradinhos.
Dos cartões que guardei, dois rapazes diferentes me chamaram a atenção pela alcunha com a qual assinavam melados cartões: um era o “seu auau” (meu, no caso), e o outro o “gatão”. Surge-me uma dúvida sobre qual seria o mais cafona para os dias de hoje. Embora mais simpatizante de cães e me vindo uma peculiar lembrança do maior bicho de pelúcia que já recebi – um auau, daí o apelido do cidadão – lembro que o gatão era a coisa certa a se fazer. Tão certa que fico indignada ao ver nossas fotos e ligo umas 17 vezes para minha mãe perguntando se ela não achava que a gente deveria ter se casado, embora o Pedro fosse mais apimentado que ele. Constato pela 879a vez que não se pode comer pimenta todo dia. Um arrozinho com feijão bem feito também é bom. Paciência. Gatão tomou outro rumo e eu ainda não atingi maturidade suficiente para dizer que foi melhor assim pra ele. Basta ver suas fotos comigo.
Não ligo pela 18a vez para minha mãe porque ela foi dormir. Continuo revirando o passado até que encontro as fotos do dia em que começou minha história com Caetano. Fotos que ficaram perdidas, pois meu celular teve um problema logo em seguida, eu fiz um backup num computador em que um dia caí sentada e acabei nunca levando no conserto. Outro dia, descobri que se conectasse um cabo à TV, o computador esmagado com minha traseira permitiria abrir a tela e copiar todos os arquivos para meu HD externo. “Fi-lo”. Sempre desejei dizer isso.
São quase 24 fotos que denotam o grau etílico dos envolvidos no episódio e um detalhe que me passou despercebido: quando saímos do restaurante, Caetano me levava nos braços – não por necessidade, mas por graça. E por descuido – ou orgulho, prefiro pensar – se deixou fotografar com a dama de vermelho no colo, um troféu com desculpa pela falta de modéstia literária.
Começa a chover forte. Tenho dúvidas se é chuva ou se a vizinha de cima instalou algum tipo de fonte para atrapalhar ainda mais o meu sono. Vou até a varanda no escuro, de top e shortinho porque está um calor dos infernos. Que delícia sentir o ar fresco da chuva. Observando a chuva cair e contando as janelas acesas, sinto uma vontade de fumar. Fumar? Mas eu nunca coloquei um cigarro na boca. Tá, é um fumar simbólico, tipo, só porque eu achei que ficaria sexy minha silhueta semi nua ainda que nem tão esbelta como eu gostaria, com um cigarro na boca e a chuva ao fundo. Ok, cigarro tá fora de questão. Penso em um copo de conhaque e em me sentar na namoradeira da varanda pra digerir tudo isso. Não posso, acabei de tomar um remédio pra dormir.
Ligo para o porteiro para reclamar da vizinha, mas no fundo é só pra ter alguém pra dar um alô. Me estendo um pouco na conversa, mas não pergunto pra ele se eu deveria ter casado com o Gatão, se o Auau escolheu mal o codinome, nem desço pra mostrar a foto de Caetano comigo nos braços, que a essa altura eu já clareeei e coloquei todos os efeitos que na altura não existiam como que para presentificar o impresentificável.
O Iphone me traz como lembrança outra foto, que a cada dia me é mais indiferente. A criatura de quem não quero mais ter lembranças finaliza seu discursinho com um “você afasta todo mundo que gosta de você”. Rumino o clichê. De fato. Quando alguém de quem gostamos pisa na bola, nos afastamos, justamente porque gostamos – do contrário, por que as pessoas discutiriam? Não preciso me afastar de quem já é afastado de mim. Abro meu livro de cabeceira, ‘Aritmética”, da Fernanda Young, para relembrar uma das tantas frases que grifei: “O silêncio próximo pensa no esquecido”. Livro no Kindle, infringindo mais uma vez a regra do afastamento de telas.
A vizinha sossegou, a chuva parou. O calor continua. Percebo que as saudades são diferentes. Umas, se cristalizam como saudades, mesmo – pedacinhos de chocolate guardados na gaveta da mesa de cabeceira. Outras, como esperança – são os chocolates das marcas que não existem mais e talvez só um milagre permitiria o seu acesso. E outras viram pó: Auaus num computador esquecido e esmagado com a bunda.
Que desculpa pra não largar as telas… vou atrás de mais alguma lembrança pra justificar minha indisciplina. Sinto novamente o meu clichê eçadequeiroziano sobre o acréscimo de estima sobre mim mesma avaliando meu traje “parece menopausa mas ainda não é”, e sorrio para a minha performance.
Aposto que em 5 minutos ou menos já terei arranjado desculpa pra mexer em outra tela. Afinal, depois de um ano de quarentena e agora com imposições cada vez mais rígidas, abrir uma tela é embarcar numa viagem: ao passado dos Hds, ao presente que não tem sido tão presente, ao shopping virtual e acabar a noite me dando um presente – não temporal, mas uma bobagem que me afague por alguns minutos.
Quanto tempo será que demora pra passar o efeito de um remedinho pra dormir? É que essa falta de conhaque também bota a gente comovido como o diabo, Drummond…
Por Ivy Cassa