Quando meu marido faleceu aos 39 anos, depois de amargar quase dois anos e meio um câncer devastador, chamou minha atenção que uma porção de gente – bem ou mal intencionada, bem ou mal informada, com problemas mais amenos ou piores que os meus – me propôs um desafio praticamente diário do “podia ser pior”.

Isso passou pelo “pelo menos vocês tiveram todo o tempo da doença para se despedir” (?), “pelo menos você é jovem e logo está com outro”, “pelo menos foi câncer e não acidente”, “pelo menos vocês não tinham filhos”, “pelo menos ele não era seu filho”.

Se você, meu leitor, nunca perdeu o marido, independentemente da idade ou causa mortis, acredite: na hora em que seu marido morre, nada “podia ser pior”. Depois que baixa a poeira, a gente até tenta se consolar com algum “tá, podia ser pior embora seja horrível”, mas isso não traz o marido de volta. E me poupem dos “elaborar o luto”, porque saudades são eternas, cada um sabe das suas e resolvi iniciar com esse exemplo porque é o meu “ficaria difícil imaginar ser pior”. Até porque ficou mesmo pior quando poucos meses depois meu pai morreu.

E ainda assim podia ser pior. Tem famílias inteiras que são dizimadas em desastres, crimes violentos, não é? De fato. E ainda assim podia ser pior.

Neste 2020 pandêmico e quarentênico (pelo menos para mim), além do medo, cuidado e insegurança em diversas questões da minha vida, seja pela covid ou por outras questões, tomei surras de notícias chocantes: uma conhecida perdeu marido e pai na mesma semana. Foi horrível, mas podia ser pior. Outro colega perdeu mãe e pai em um mês. Foi trágico, mas podia ser pior. Um amigo perdeu mãe e pai no mesmo dia. Foi medonho, mas claro que podia ser pior. É que achei que tava ficando cada vez mais difícil o desafio do “podia ser pior”.

Como é bobo esse concurso de crueldades. Sempre podia ser pior. Diga para um desempregado que não tem perspectivas que podia ser pior se ele tivesse covid. Diga a alguém que está com covid que seria pior se tivesse com câncer. Diga a quem tem câncer que podia ser pior se fosse paraplégico. Diga a um paraplégico que seria pior se ele também tivesse câncer, covid, fosse desempregado, tivesse perdido mãe e pai. E chegue a um ponto de parar com essa disputa babaca. Porque, na hora em que há um pedregulho no seu sapato, ELE passa a ser o seu problema. E só você tem condições de mensurar quantos passos consegue dar até o pé ficar em carne viva.

É um exercício diário lidar com nossas próprias dores, tentar priorizar problemas, suavizar machucados, equilibrar pratos e lidar com os “podia ser pior” dos que espiam uma fresta da nossa vida e já se veem com propriedade pra enfiar guela abaixo um “podia ser pior” – sem qualquer conhecimento ou propriedade para julgar a pedra no sapato do outro.

Este não é muito meu estilo de texto, mas podia ser melhor se a turma do “podia ser pior” se calasse.

(por Ivy Cassa)