Amanhã embarco para minha 10ª viagem a Lisboa. Estou meio com medo e meio triste. Será a primeira chegada sem o Pedro, perdi meu guia. Um guia meio maluco, daqueles que saem dirigindo em alta velocidade e apontam para o horizonte: Torre de Belém, Castelo de São Jorge, Pombal, Pavilhão das Exposições. Pronto, acabou.

Depois de 5 minutos eu nem sabia que existia um Mosteiro dos Jerônimos.

É que o Pedro nasceu lá; pra ele tudo era um saco. Ir pra Lisboa era pra comer, beber e trazer muita tralha na mala.

Assim, meus pontos conhecidos (e preferidos) na cidade acabaram sendo o Shopping Colombo e o Amoreiras, além do Outlet (que vende as melhooooores meias da Europa) e o Pingo Doce, que parece um Pão de Açúcar e tem queijos e vinhos de derreter a língua só de pensar.

Quando éramos enamorados, ele ficava comigo nas lojas, me ajudava nas combinações das peças e ainda carregava os pacotes sorridente. Depois, ele me deixava sozinha no shopping e ia atrás de escapamento, peças pra bicicleta, suspensão pro carro, essas coisas que até não sei para que servem. Muito mais úteis às minhas calças Diesel, que até hoje continuam perfeitas!

A viagem a Lisboa com o Pedro começava num duelo: eu afobada pra sair de casa, bem capricorniana, e ele organizando os CDs por cores, com a mala inteira por fazer, bem ascendente em sagitário. Dizem.

Mas eu acredito em Mary Poppins. Algo acontecia e enquanto eu fazia o último xixi pra descer, a mala dele milagrosamente estava pronta. E eu que tinha passado o último mês preparando ainda saía sem alguma coisa.

Pedro ia no táxi ou trabalhando até o aeroporto de Guarulhos (o que eu não gostava) ou, quando não estava no celular, fazia paródias encabulantes com as músicas que tocavam na rádio do taxista – confesso que nunca consegui chegar à conclusão se os motoristas gostavam daquilo ou se queriam um pino ejetor de passageiros pra nós.

Éramos quase sempre os últimos a fazer o checkin, quando não os últimos também a entrar no avião: “Pedro, eu tou levando CRISTAIS pra sua irmã! Não vai ter lugar no bagageiro.” Mas ele já nem me ouvia mais. Tinha colocado o raio dos fones que isolam a pessoa do mundo e, no caso, eram fones para ele se isolar de mim. Simples assim.

E éramos mesmo os últimos a entrar no avião, porque ele cismava de organizar a mochila bem na hora que aparecia na telinha “last call” e eu já tinha 2 ou 3 sintomas de infarto. Ele dobrava cada papelzinho que não ia usar, fazia quase um origami com aquilo antes de jogar no lixo, e o piloto na cabine de comando tamborilando os dedos por causa da gente.

Mal o voo começava, ele dormia. “Pedro. Ô Pedro”. “Que foi?” “Vamos namorar um pouquinho?” “Mor, eu tou dormindo. Pensamos nisso em Lisboa.” Ah! E sem dúvida ele acordaria com sinusite, o que já me entusiasmava para dormir com ele nos próximos dias, porque não haveria fone que me livrasse dos seus roncos.

Não tinha kindle. Livro era um negócio pesado pra carregar. Eu não sou propriamente uma cinéfila… O que fazer em tantas horas de voo?

Já tinha desinfetado minha bandeja, cinto de segurança e controles da TV, até os do Pedro. Fiquei boazinha esperando o serviço de bordo chegar.

“Peeeedro”- sacudi. “Ô mor, que foi agora?” “Estão servindo bacalhau”. “Tu vais te empanturrar de comer bacalhau nos próximos dias. E agora dorme.” Ele definitivamente não me conhecia.

Chegava a comida. Eu devorava meu bacalhau. Pedro nem tocava no prato dele. Sobremesa: pão de mel da Munik. “Ué! Moça, não tem pão de mel pra mim?” E quando olho na bandeja do Pedro, havia duas embalagens abertas. “Peeeeedro”. “Calma, mor. Em Lisboa eu te compro um chocolate beeem grande.” E colocava os fones de novo.

Lisboa é uma cidade pequenina e cheia de cores, Pedro me ensinou.

Mal chegávamos e ele já ia atrás das Bolas de Berlim, que até hoje não entendi porque não se chamam sonhos, como os daqui. E não deixava pra trás também os ovos moles (que ele chamava de “ovuxmols” de Aveiro). Ele comia um, dois, três de uma vez!!! Eu só olhando e tomando Dramin B6.

Chegando à casa da família dele, onde nos hospedaríamos, era sempre o mesmo ritual. Ele discutia primeiro com a mãe. Depois com o pai. Daí a mãe discutia comigo. Então eu colocava ele na discussão. Férias boas são assim, só paz.

Relaxávamos. Eu queria ver a Torre de Belém, e ele os escapamentos para moto. Eu queria os pastéis de Belém e ele o quadro de bicicleta. Eu o Mosteiro dos Jerônimos e ele as suspensões para o carro.

Afinal, voltávamos com o porta-malas como se tivéssemos chegado do supermercado e precisávamos de alguma técnica para carregar o “contrabando” para dentro de casa. O pai geralmente estava dormindo, mas a mãe nos esperava até altas horas pra fazer a sabatina sobre dia – a qual museu tínhamos ido, o que eu tinha achado da bacia em que Dom Pedro lavava o dedão do pé direito, essas coisas. Eu entrava com uma sacola da Desigual tão grande que parecia transportar um porco no rolete. Ouvia um “continuam gastando”, né? Sogra é sogra. E enquanto eu contava de 100 a 1 respirando em 4 tempos pra não dar a resposta merecida, Pedro habilmente passava com as molas das suspensões para o quarto.

Era um crime delicioso de se ver: pijamas, roupas, sapatos, lingeries! Era o nosso Natal fora de época. Ah, que tempos bons aqueles que o Euro estava a 2,30.

Como espertos comparsas, trancávamos a porta do quarto a chave pra ninguém descobrir nossos tesouros.

Na próxima semana, desembarcarei com meus tênis azuis em passo firme, farei cara feira para o cara da alfândega se ele se meter a besta comigo. “Moço, não são 23 kg de cocaína. São 7 necessáires e 7 pares de sapatos. Basicamente só isso.”

Na minha primeira ida sozinha a Lisboa, eu talvez me esconda um pouco das bolas de Berlim, e prefira escapar dos travevesseiros de Sintra.

Mas se tiver um vinho Cortes de Cima, eu vou beber em homenagem ao Pedro. Pode até ser ouvindo um fado bem melodramático – mas sem fones de ouvidos. Portanto, leitores, se eu estiver muito melodramática esses dias, vocês já sabem porquê.

PS. A foto é com os filhos que gostaríamos de ter tido, mas ficaram como plano pra gente ter em algum outro lugar.

(Ivy Cassa)

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