Fui uma das primeiras a entrar em um dos ônibus que leva os passageiros do subsolo do aeroporto de Congonhas até os aviões que ficam parados desconectados dos fingers.

Deu até pra sentar naqueles bancos laterais e acomodar a mala de mão entre minha coxa direita e a porta do meio.

Cabeça baixa, meio sonolenta, de repente vi um par de coxas compridas se acomodar ao lado da minha coxa esquerda. Davam a impressão de serem coxas bonitas, dentro de uma calça jeans com lavagem escura, mas um tantinho desbotada, que chegava até a parecer a cor que eu estava usando.

Ele devia ser alto, mais alto que eu, o que quase sempre parece um afrodisíaco pra quem tem 1,75m. Olhei com o cantinho do olho esquerdo pra ele e, de súbito, reparei que ele também me espichava o rabo do olho direito.

Foi muito rápido, pareceu um esbarrão, e ambos fugimos apressados daquele olhar, como se fosse proibido. Baixei novamente a cabeça e examinei suas mãos pra ver se encontrava alguma aliança – ufa, nada! As mãos eram bonitas, másculas, unhas limpinhas e bem cortadas, praticamente uma bênção! Meus olhos continuaram passeando delicadamente sobre o corpo dele, enquanto eu tomava muito cuidado pra não mexer uma polegada sequer da cabeça. Encontrei ainda uma camisa informal, mas alinhada, do tipo que os moços que trabalham naquelas empresas que têm um nome americano só pra dar um ar de elegância usam: project finance, private equity etc. Ele devia ser um rapaz bem encaminhado na vida, porque não era qualquer um que andava por aí com “aquele” tipo de calça e de camisa, e ainda pegava um avião na 6a feira à noite. Os sapatos não consegui ver, porque ele escondia os pés embaixo do banco, mas podia apostar que eram bons, se o rapaz era todo tão bom! Reparei que ele usava o relógio no braço direito e senti uma repentina vontade de lhe perguntar as horas, só pra descobrir como era a sua voz. Mas que bobagem – pensei! Hoje em dia qualquer um tem celular e eu passaria por esquisita fazendo isso. Além disso, escancararia qualquer intenção de me aproximar dele – uma perdigueira, ele julgaria.

O ônibus foi enchendo, mas não a ponto do ombro direito dele ter de encostar no meu esquerdo.

Desconfio que ele também me olhava de cantinho de olho, mas igualmente não dizia nada. Seria comprometido? Gay? Estaria me olhando de cantinho com aversão ao invés de desejo? Ai, pobre de mim!

Se ele estivesse num aplicativo de relacionamento, será que já teríamos trocado coraçõezinhos? Era bem capaz de que àquela hora termos um Match: eu já saberia onde ele morava, em que universidade se formou, o que estava indo fazer em Goiânia numa 6a à noite, quais países ele conhecia, se ele estava no aplicativo pra namorar ou só pra pegação, se bebia, fumava, tinha filhos… E no dia seguinte ainda podíamos sair pra tomar um sorvete. Mas estávamos ali, ombros e coxas lado a lado, em silêncio, decifrando um ao outro secretamente, enquanto esperávamos os passageiros mais atrasados que nós acabarem de entrar.

Quando as portas do ônibus finalmente fecharam, uma criança sentada ao lado esquerdo dele, com muito entusiasmo, se pôs a cantar “motorista, motorista, olha o poste… não é de borracha, lalalá…” Não consegui conter um riso que não chegou a ser uma gargalhada, embora tenha sido propositadamente mais extravagante que meus risos cotidianos. Não que fosse propriamente engraçada a música ou a situação, mas talvez porque ele pudesse retribuir aquele riso com pelo menos um sorriso e então tudo mais ou menos se encaminharia. Que tristeza! A única pessoa que riu de volta foi a mãe da criança, que completou: “aqui não tem poste, filho, só tem avião.” Ri amarelinho pra ela, agora já bem sem graça.

Chegando finalmente à escadinha do avião, assim que o motorista abriu a porta do ônibus, levantamos os dois de maneira sincronizada. Ele devia ser uns 20cm mais alto que eu. Uau! Empertiguei-me pra parecer também mais alta, apesar de justo naquele dia estar usando sapatilhas. Atrasei o passo pra ver se ele afinal dizia qualquer coisa no trajeto – “que chuva, que frio, que avião”, qualquer uma… Nada! Subimos quase pé com pé a escadinha, demos um boa noite com a cabeça para as aeromoças, ergui com sacrifício a mala até o bagageiro pensando: “é agora!” Mas, quando olhei pra trás, vi que ele já estava sentado na poltrona “2E”. É bem provável que não tenha reparado a dificuldade que tive pra ajeitar minha mala lá em cima. Talvez fosse mesmo comprometido ou gay, ou eu tenha de fato acordado muito feia e ele não tenha visto sex appeal algum em mim. Ou, de repente, seja apenas culpa dos modelos de abordagem e relacionamento dos dias de hoje.

Sentei na poltrona “3B”, recostei a cabeça, fechei os olhos e senti saudade da época em que não havia celulares nem aplicativos. E quase ninguém ia me achar esquisita ou perdigueira se eu virasse pro lado esquerdo e perguntasse, como quem não quer nada, “que horas são?”, só pra puxar assunto.

(Ivy Cassa)

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